Todo mundo tem um léxico particular para falar do que conhece. Nascida e criada no Rio de Janeiro, nenhuma palavra me evoca tanto a Cidade Maravilhosa quanto a carioquíssima “garçonnière”.
Primeiro, ultrapasso o desafio de falar do que não lembro mais. Como minha biblioteca interna era de Alexandria, agora só encontro detalhes de recordações em fragmentos desconexos de papiros chamuscados revoando sobre escombros incandescentes e pilhados. O presente que eu vivi era futuro no Rio que minha mente resgatou. Camisas brancas de botão masculinas de mangas curtas. Relógios prateados de armação quadrada asfixiando pulsos grossos e bronzeados. Cheiro de jornal quentinho acabado de entregar com fotos de fuscas e brasílias parados em frente à praia de Copacabana. Jovens brotinhos com violão tocando bossa nova na areia vestidos com meias e sapatos sociais. Políticos engravatados e calvos consolidando a criação do Estado da Guanabara. A destruição do Morro do Castelo. Sim, para minha memória com vários ingredientes e sem origem controlada, é bem plausível que eu tenha vivido também durante a Era Vargas, a Revolta das Vacinas, a Peste Bubônica na Sereníssima República de Veneza. Quase certeza que vivi em Macondo, em Gotham e no Arraial dos Tucanos. Mas a sensação por alto que fica em mim é: o Rio é masculino.
Os dois lados da minha família cobrem amplo espectro da fauna social carioca, indo de ex-senhores de escravos a funcionários do Banco do Brasil, passando por exilados políticos que hoje me permitiram fazer a viagem de volta e me exilar onde estou, com motivações muito menos políticas e substancialmente mais autoimpostas. Mas meus extremos genealógicos conhecidos talvez sejam um bisavô paterno, meu Cassi Jones particular, o que faz com que minha bisavó seja uma Clara dos Anjos versão indígena, com direito a anúncio de núpcias jamais contraídas no jornal e falsificação da certidão de nascimento da jovem para esse fim. Com isso, a sensação se expande: o Rio é masculino e deletério para mulheres direitas, que não devem permanecer em ambientes em que só estejam homens. Mônica Granuzzo, Aída Curi. É possível que eu tenha ouvido no ar o verbo “currar” na mesma época que “chocrível” e “alucicrazy”, duas expressões que jazem no cemitério da retórica desde os anos 80. Antes o verbo tivesse o mesmo fim.
Jovens moços de família, rostos bronzeados, relógio prateado de armação quadrada rente ao pulso, com apartamentos disponíveis para dispor de corpos de jovens moças contra sua vontade. Jovens moços casados, recém-nomeados para cargos bem remunerados, com apartamentos disponíveis para manter amantes ou ter a companhia pontual de mulheres menos direitas. Jovens moços da bossa nova tocando violão, com apartamentos para receber seus amigos artistas boêmios e mulheres quase nunca vistas como artistas boêmias, mas sempre não direitas, a falarem obscenidades que eventualmente entram e são festejadas nas obras e músicas deles, mas nunca nas delas, pois, se assim fosse, teriam que correr até o cartório mais próximo para registrar “Puta” como o novo sobrenome. Com dois Ts, talvez, porque olha aí a numerologia. Jovens moços com dois ou mais tetos todos seus.
O Dr. Nome-de-bairro (Enedebê para os íntimos), nunca o vi com violão, areia no sapato social nem camisa de botão de manga curta. Eu o conheci no meu segundo estágio, em um escritório que, como o antigo engenho que pertencia à sua família e virou bairro de subúrbio, leva seu nome. Salinha em um andar médio em um prédio comercial moderno no centro da cidade, janelões e braços abertos sobre a Guanabara.
A primeira semana foi toda sorrisos: fui apresentada ao outro sócio e ao resto do harém formado por outra estagiária, uma advogada júnior calipígia e soturna e mais uma com o traquejo de salão de uma dona de bordel. Fecha o plantel a secretária. Muita mise-en-scène, muito charme se espalhando como perfume pelo recinto, Dr. Enedebê acendendo os cigarros das senhoras fumantes presentes com seu isqueiro porque “noblesse oblige”, sem entender que francês muito aleatoriamente na conversa tem o mesmo efeito cafonizador radioativo da palavra “requinte” qualificando o que quer que seja.
E os dias se seguiram com uma carga de trabalho que me impedia de observar melhor as dinâmicas à volta, com direito até a cédula de dinheiro de valor substancial afixada à pasta do processo e recado do segundo sócio para que eu fosse “amaciar” o escrevente da Vara de Família, meu batismo de sangue no ritual milenar da corrupção no Judiciário fluminense. Mas deu para notar que a tensão entre a Calipígia e a Dona de Bordel (doravante denominada Madame) era palpável. Calipígia sempre nublada com chuva. Madame só risadas e meia-voz derretendo palavras nos ouvidos dos sócios. Também ficou claro que ninguém ficava no escritório depois das 19h e eu tinha um tempo valioso em silêncio para trabalhar.
Na segunda semana, escolhi ficar até mais tarde para revisar alguns papéis e só vi a hora quando ouvi uma chave na porta da frente. Eram 20h30 e a secretária na mesma toada largou os sacos com bebidas alcoólicas no balcão e correu até mim com os olhos arregalados. “O que você tá fazendo aqui? Vai embora agora.” (Pontos de exclamação caberiam aqui pela intensidade das palavras, mas elas foram quase sussurradas como se para evitar perturbar o torpor dos espíritos do mal que pairavam entre o ponto onde eu estava e a porta de saída.) “Deixa tudo como tá, vai embora.” E a urgência daquela voz me fez alcançar a bolsa e esquecer o paletó na cadeira.
Quando cheguei, no dia seguinte, só estavam a outra estagiária e a secretária, recomposta na sua sorridência e obsequiosidade. Abro uma sacola para acomodar meu paletó esquecido e, ao pegá-lo, noto uma grande mancha espessa endurecida perto da manga. Ampliando o campo de visão, constato algumas folhas do documento em cima da mesa desalinhadas e as levanto para descobrir que estão grudadas umas nas outras. Entra em cena um leve cheiro de água sanitária espetando minhas narinas. E outra mancha de um vermelho escuro marca o tapete na base da cadeira.
Não durei muito tempo naquele estágio. C’est la vie.
Amei! Porque memória puxa memória e a minha é da Idade da Pedra Lascada e... abre o baú.
Belo dia me apareceu no escritório o eletricista que fazia consertos no prédio e lamentou o que ocorrera com ele; na véspera tivera que pagar uma corrida de táxi para uma Garota de Programa que fora chamada para um....programa ao fim do expediente mas ao chegar ao escritório da renomada Cruz V.......... o encontrou fechado e não tinha dinheiro para voltar para casa, O eletricista ficou sem o dinheiro e fiquei compadecida. Reembolsei a ele o táxi da Garota de Programa. O pobre homem me agradeceu. Mas o mundo é assim. Eu sou da época da Moças de Família. Dizem no Nordeste que os cabritos andam á solta, quem tem cabras que as guarde.
Adorei!