Nunca recebi convite para a “festa de um povo” e, sempre que tentei entrar de penetra, fui escoltada até a saída.
O carnaval do Rio dá a largada na sexta-feira, embora seja ensaiado à exaustão no mínimo desde o raiar do ano novo. Dessas sextas, poucas foram as que não me trouxeram grandes dissabores. Havia uma quebra de sintonia, com o momento, comigo, com o entorno, a antena pega um vento e a estática arruína toda a transmissão.
Meus carnavais quando criança eram muito parecidos. O contato com o samba era o mais oblíquo possível, a apuração do Grupo Especial das agremiações do Rio de Janeiro. Mesmo tendo visto apenas alguns minutos dos desfiles na TV depois do jantar, me fascinava passar a quarta-feira de cinzas ouvindo grande indignação quando o senhor do dez, nota dez, com pendor dramático, fazia uma micropausa e modulava a voz para refletir a gravidade agourenta de um nove ponto oito.
O samba só chegou na minha vida na adolescência, fazendo baldeação em Chico Buarque, nas várias trocas de fitas cassete feitas para os amigos (o algoritmo da minha geração). Samba, mas branco e classe média. Minha vida continuava alheia às manifestações mais populares.
Quando finalmente vi a folia e fiz menção de entrar, as sextas-feiras pareceram fazer questão de me mandar recados pouco sutis: o cachorro esfacelado pelo carro em alta velocidade que me transportava e que preferia ouvir meu choro incessante a dar meia volta para tentar prestar socorro; o ostracismo permanente de todos os meus convivas porque, em um jantar caseiro, eu não quis me juntar às outras namoradas-empregadas e preparar o repasto na subserviência que nos cabia; perda de todo o dinheiro separado para os dias; brigas com namorados; gastroenterites; pés torcidos.
No ano em que concluí que o Rio não era para mim, ainda tentei uma oferenda. Toquei na bateria de um bloco, fui a rodas de samba, a todos os ensaios, a todos os eventos associados, melhor amiga e copilota do mestre de bateria. A oferenda foi devolvida: terminei um namoro de quatro anos pelo telefone, sozinha, nariz fungando e bigode postiço no meio da praça. E, no dia seguinte, precisava invocar energia ao éter a fim de tocar para foliões incautos. Gestei minha fuga e parti nove meses depois.
Avançando dez anos, um continente e muita análise, passei a última sexta de carnaval com algumas de suas “carnes”. O tempo relativiza, afrouxa o foco, alarga o contexto, eu achava. Mas o replay foi sentido quase de imediato: a estática estava lá, eu me divorciando dos instantes em vez de lançar pontes, a frequência pegando uma rádio totalmente diferente, agravada pela observação interior de que meu exterior traía o agora tentando agir como se nada estivesse acontecendo, limpando o vidro do carro com o para-brisas cheio de lama. Carro em chamas caindo no abismo, eu contendo as rachaduras com as mãos, emaranhada no fio da meada. E rindo quando vinha a deixa. Porque claro que sim.
Mas, abstraído o pesadelo, é possível que o recado finalmente tenha sido dado. Ele nunca teve o objetivo de me alienar. O carnaval verdadeiro não é excludente. Preciso parar de tentar escapar do Rio, de abraçá-lo mantendo o quadril respeitosamente distante, de deixar o corpo se transformar em um palimpsesto de traumas. Para isso, ainda vou ter que ouvir os pássaros cantar. Ver as águas dos rios correr. Porque a catarse do carnaval não admite molhar apenas os dedinhos; só arrebata ao se mergulhar, afundar e desaguar no oceano.
Que bom rever este texto tão bem escrito!!! ❤️
Tão bom! ❤️