Ceci n'est pas uma entrevista de emprego
Som: Ponto para Preto Velho - Alessandra Leão + Mateus Aleluia | Cheiro: tomada queimada
— Olá, Teresa. Vou fazer umas perguntas para avaliarmos como sua experiência se enquadra no cargo pretendido.
— Tudo bem.
Mãos suadas, Teresa quase nunca suava. Já eram meses à procura de um emprego, centenas de currículos rodopiando no vácuo da internet. Essa entrevista era um passo no caminho; quando a linha de chegada ainda não está à vista, tudo é milímetro.
— Você disse em seu currículo que tem experiência com inteligência artificial. Dê um exemplo de como ela foi usada no seu trabalho.
Teresa lembrou-se de expandir os cantos dos lábios para demonstrar o intenso prazer que é responder a esse tipo de pergunta. Ela foi tradutora por décadas: muita fluência, eloquência, dicionários de regência e ocorrência, uma potência na pesquisa.
Sem aviso prévio, seu trabalho virou reescrever texto malfeito de uma tradução automática ainda impúbere, a um valor mais baixo porque, na cabeça do cliente, o conteúdo já tinha sido traduzido. Como uma mulher obrigada a limpar bunda suja de criança que berra do banheiro “mãe, acabei!”. Quando a IA atingiu a maioridade, expulsaram a mãe de casa.
— Bem, Zandro, tive a oportunidade de treinar mecanismos de tradução automática e participei de projetos envolvendo processamento de linguagem natural para tornar a inteligência artificial mais humana.
— …Teresa...você mencionou em seu currículo…que já trabalhou com gestão de projetos. Dê um exemplo de como usou isso em seu trabalho.
As palavras de Teresa saíam no automático. Fingir entusiasmo pelo assunto, ou por todo esse processo, exigia uma formação em Artes Cênicas que ela não possuía. Mas a necessidade de arrumar um sustento costuma esculpir máscaras de Téspis aceitáveis. Seria mais fácil se o entrevistador fosse mais expressivo: uma inclinação de cabeça, um sorriso, um muxoxo. Nada.
— ...e consegui isso com uma equipe enxuta de sete pessoas.
— ...
— ...olá? Tá me ouvindo?
Na tela, o círculo antracite com quem Teresa vinha falando e que ela apelidou na cabeça de “HAL do RH” parou de piscar.
— Zandro, ouviu o que eu disse?
— ...
— ...
*** ENTREVISTA INTERROMPIDA POR PROBLEMA DE CONEXÃO. O/A CANDIDATO/A DEVE CONCLUIR A ENTREVISTA COM ZANDRO AI PARA PROSSEGUIR. ***
Tela inerte, olho morto. Buraco negro, externo ao tempo. Ela encarou o círculo por mais alguns minutos à espera de uma indicação. Não sabia se o processo seletivo seria cancelado se ela fechasse a página. Se poderá tentar novamente. Melhor continuar a simular o êxtase com as maravilhas da gestão de projetos como se nada tivesse acontecido até a conexão se restabelecer? Que conexão?
“Dave, essa conversa não tem mais razão de ser. Adeus.” “HAL? HAL!” Tela inerte, olho morto. Buraco negro, externo ao tempo.
Teresa saiu de casa como estava, roupa formal da cintura para cima, descalça e de calcinha ao sul do Equador. Suas pernas a carregaram até um jardim, pracinha de esquina. Pisou na grama recém-cortada, cheirinho cru, e absorveu a umidade fresca pelas solas dos pés. No alto da amendoeira, dois passarinhos faziam um dueto. A primavera chegou.
Ainda não nos roubaram o pensamento e a crítica. Entre vistas, quem nunca! Me lembrei de há 55 anos em que eu estava numa entrevista na Shell e o "astuto" psicólogo percebeu uma aliança na mão direita. Do alto da sua genialidade disparou: está noiva, vai casar e... ter filhos. Não caí porque estava sentada mas perdi qualquer inteireza e disse! Não, pelamor, minha mãe teve quatro filhos e eu nem penso nisto! Foi antes da mulheres precisarem provar que sim, podiam ter filhos, trabalhar de domingo a domingo e exibirem um sorriso de asafata no rosto. Depois vieram as torturas grupais para mostrar comprometimento com os interesses das empresas e de empregados virarem "colaboradores". Mas Tereza raciocina e pode sentir e pensar.
Bravo!