Talvez tenha sido o clichê anual acachapante da performance coletiva online de dia das mães que buliu as águas do meu (in)consciente ambivalente. O fato é que acordei hoje direto em um vórtex para o Teatro Municipal quando fui com minha genitora ver Carmen na versão flamenca do Saura apresentada pelo Antonio Gades. E os cheiros e os sons e as emoções de 1995 explodiram no meu rosto tal qual torta em um pastelão tosco.
Vou ser obrigada a dar uma rasteira em vocês, mas esse texto não é sobre flamenco, sobre 95 nem sobre minha mãe. Deveria ser, já que mulher, maternalidade, é a coqueluche tópica do momento, né? E lacração é moeda nos dias de hoje. Além disso, só vou me considerar minimamente escritora no dia em que, espelhando James Baldwin, eu expectorar minha mãe nas páginas de um livro. Mas esse momento, se chegar, não é agora.
Quando perdi minha memória e o eterno rascunho que fui até os 40 anos desapareceu por completo, lembranças como essa e conhecimentos que vinham à tona sem aviso me desestabilizavam porque era a afirmação de que um Bartleby tinha passado a habitar minha caixa craniana: ele estava lá, pois me voltavam coisas, mas respondia “I would prefer not to” a qualquer pedido que eu efetivamente fizesse. E, como nas interpretações da história do Melville, passei anos em uma ciranda para entender se minha mente mudou de ares por resistência deliberada, absurdo existencial, melancolia. Se em algum momento ela iria me dar um “sim” ou “não” definitivo.
Hoje em dia trabalho com a hipótese de que meu Bartleby vai continuar “preferindo não”, mas não vai mais definhar em um estabelecimento prisional, e que as memórias que furam o cerco, ele me manda para que eu possa examiná-las só com os sentidos, sem o crivo mental que modela as emoções e contamina todo o processo logo de início. Não tenciono de todo menosprezar a mente, que é essencial para a preservação e o futuro da humanidade. Há mentes esplêndidas que estão aí para isso e sou a primeira a protegê-las. Mas um sinal de curva me mandou sair dessa estrada. Estou finalmente começando a aceitar minha biografia de Benjamin Button da intelectualidade, de quem aprendeu a ler sozinha quase aos quatro anos, lia Sartre e Joyce (e bula de remédio) no colégio e foi se infantilizando ao longo das décadas até virar uma Dory que aprecia suas memórias como uma ópera e vai esquecê-las assim que sair do teatro. Talvez eu passe a gostar de comédia pastelão. Se tiverem a oportunidade, observem o espanto no olhar de uma criança ao ver seu primeiro show de fogos de artifício. Isso não se repete nem se produz artificialmente. Quem sabe eu tenha a chance de desenvolver o superpoder de me espantar de novo visceralmente com o que já vivi. Mas só quando meu Bartleby preferir.
Espantar-se é preciso. Sempre. Amei o texto. E adoro Bartleby!
Adorei! Que o teu Bartleby ainda te deixe surpreender com belas coisas na tua vida