Dentre todos os princípios ocultos que regem os planos de existência, nenhum é mais arcano do que o postulado de que toda TV ao alcance de um maconheiro estará sempre passando desenhos do Pica-Pau.
Maconheiro. Palavrinha pesada, a boca se comprime para verbalizar o “M” e explode o resto com um perdigoto azedo de desprezo. Foras da lei no caminho da perdição com destino a outras drogas mais fortes e uma vida de bandidagem, “não viu como ficou o filho da Verinha?”. Uma visão de mundo com apenas algumas décadas que apaga milênios de uso de uma planta para fins diversos, até medicinais, e exemplos de vários animais que continuaram cidadãos de bem depois de apresentados a marula e catnip. Agora que donos de startup brancos descobriram o mapa do tesouro que traficantes conheciam há tempos, “maconheiro” está passando pela assepsia rumo a “usuário de cannabis”. Não era assim na adolescência de Simone.
Maconha nunca foi sua praia (ela é feita de música e açúcar), mas devido à ressonância que tinha com desajustados e freaks sensíveis, sempre foi sua vizinhança. Anos de fumo passivo e experiências 100% acústicas em shows ao vivo de bandas invisíveis por conta da névoa londrina no recinto. Além, é claro, das clássicas festinhas em apartamento. Foi numa delas que Simone ganhou sua credencial de maconheira.
O primo do namorado — na praia, cabelo comprido, violão, do tipo que também canta e tem sempre uma mulher em volta batendo pestanas e ondulando os ombrinhos enquanto faz backing vocals — chamou Simone e seu consorte para a festa que ele ia dar mais tarde, “coisa pequena, querem chegar?”.
O evento era às nove da noite, o primo mora no final de Ipanema, Simone e o amado chegaram às onze, como manda a educação carioca, contribuindo com algumas cervejas na mão. Musiquinha alta já no corredor, a porta se abriu e revelou uma cortina de fumaça. Literal.
Luzes coloridas em cantinhos estratégicos iluminavam paredes que tinham duas demãos, uma de tinta e outra de convidados contornando todos os cômodos do apartamento de três quartos. Vários baseados do tamanho de tubos PVC em rodízio simultaneamente. O namorado calculou umas 100 pessoas em 100 metros quadrados e cavou cirurgicamente um espaço perto do batente da porta junto a um rapaz de camisa tie-dye que dava o seu dois. Na TV sem som, o gato taxidermista capturava o Pica-Pau em troca de cem mil dólares.
Simone mal notou porque estacionou na cozinha. Suas narinas treinadas captaram o aroma de chocolate dentro de uma panela no fogão, cobertura para um bolo que uma menina de bindi na testa estava preparando. Bolo gourmet, parece, tinha uns raminhos grossos de orégano flutuando no chocolate. Já afetada pelo álcool ou pela neblina aromática, Simone prescindiu das regras básicas de higiene e começou a lamber repetidamente os dedos mergulhados no tacho.
O namorado se juntou a ela bem na hora em que o primo passou e disse casualmente que estava indo embora porque “isso aqui vai dar merda”. Ele não pensou duas vezes e, na trilha do Leão da Montanha, fez sua “saída pela direita” arrastando Simone pela mão lambuzada.
Foi isso mesmo que aconteceu? Simone não tinha certeza, ela piscou e estava na praça, piscou novamente e estava na praia, sentada em um banco de madeira embaixo de um coqueiro, vento morno batendo no rosto, namorado rindo com muitos dentes, lembrava o Tutubarão e falava muito baixo, cê space calda camarão louca, ela não conseguia ouvir, que dentes grandes, ele sempre teve esses dentes? Tutubarão, Hannah Barbera. Os Flintstones, os Muzzarellas e os Jetsons eram a mesma família viajando pelo tempo? Os Smurfs são Hannah Barbera? Será que os Smurfs eram cogumelos que o Gargamel plantava? Simone olhou para o chão e quis se jogar para o lado. Ela tinha certeza de que iria flutuar durante a ação da gravidade, tal qual uma folha, como se tivesse comido um biscoito Scooby.
Ela piscou de novo e o namorado está dando um beijinho de despedida no carro, “eu espero você entrar”, sobe os três degraus na frente da mesa do porteiro, “mas ele não está aqui, quem abriu a porta?”, olha o relógio no braço que está segurando a chave, quatro horas, “tá tarde”, abre a porta do elevador e mira o tapete felpudo, pisca, seus olhos focam no teto do elevador, olha o relógio no braço que está segurando a chave, cinco horas, “tá tarde”, procura o interruptor do corredor. Pisca.
Simone levantou da cama ao meio-dia com fome específica de croissant. Ao passar pela portaria a caminho da padaria, encontrou duas vizinhas que acenaram com a cabeça e a acompanharam com o olhar e um sorriso falso, senhoras do tipo que cochicha berrando porque quer ser discreta, mas lá no fundo quer que a pessoa saiba, e nem esperaram ela chegar na rua para proferir “Soube dessa aí? Nelsinho tava voltando do bar ontem e viu dormindo aqui.” “Isso é droga. Maconha. Começa assim, não tem mais volta.”
Quero mais.
Soberbo. Está cá tudo o que te carateriza como escritora. Adorei ❤️