Ela abre os olhos e demora alguns segundos para deduzir a forma emoldurada pelo vidro do carro: uma barriga avantajada — gestação de banha, daquelas duras, de gordura visceral que rearranja e empurra os órgãos todos para frente. Seu instinto é bater ligeiramente no braço do namorado, que, confuso, submerge o rosto da sua blusa desabotoada. Dois toques com os nós dos dedos no vidro do motorista.
— O senhor faça o favor de sair do veículo.
Ela faz o mesmo e nota que está com os seios quase à mostra para o sargento barrigudo.
— Quantos anos você tem?
— Quinze.
Quando começa a abotoar a camisa, ele a manda deixar como está.
— Isso é prova.
Não é possível escutar o que o segundo policial fala com o namorado; após alguns minutos, este volta para o carro.
— Vamos pra delegacia. Ele disse que isso é crime de sedução de menor.
— Mas você é meu namorado! E só tem dezenove.
— Diz ele que é o que tá na lei.
Mafuá em cinza, sépia e branco encardido, com remendos nas divisórias em tons de verde água; luzes fluorescentes projetam as sombras das pilhas de pastas de papelão nas mesas e aprofundam as olheiras da madrugada. A campainha estridente do telefone enfatiza a repugnância do buquê olfativo de tinta, sangue, cigarro, café e suor.
O namorado é levado a uma sala para prestar informações. Persianas abertas; no Leblon tem que ser assim. Da cadeira onde está, perto do balcão de informações, ela procura aliviar o tédio e o sono ouvindo as histórias de outros figurantes da noite: duas travestis algemadas tentaram assaltar transeuntes com uma seringa cheia de sangue contaminado por HIV na Carlos Góis; uma puta de rua resolveu bater ponto na Hippopotamus sem ter o contexto certo; um grupo de jovenzinhos se indignou porque houve tiro para o alto na boate em que estavam, mas a viatura que parou na porta foi embora sem averiguar porque, nas palavras do PM, “uma coisa de cada vez; primeiro meu retrovisor quebrado”. Esses moleques não devem ser da área; os filhinhos de papai daqui não esquentam a cabeça com isso, ou também estão carregando arma do pai, ou têm vias alternativas pra resolver seus desconfortos. Os donos das casas noturnas que se virem.
O pançudo aparece na porta de uma das salas e faz sinal para ela o acompanhar. A sala tinha uma porta ao fundo que parecia dar em uma sala menor, esta com uma porta para um recinto ainda menor e sem indícios de ter janelas.
— Vamos ali, eu preciso fazer exame de corpo de delito.
Seus quinze anos de vida eram mais que suficientes para saber que esse não era o procedimento certo. Ela trava: de um lado, os anos de adestramento que recebeu para nunca negar o que lhe pedem; do outro, a mensagem de cada pelo eriçado do seu corpo informando que, se entrasse ali, ela não sairia a mesma. Ganhou o corpo.
— Não entro ali.
— Tenho que fazer o ex...
— Não entro ali!
— Tudo bem. Abre mais um pouco a blusa para eu examinar.
Ela desfaz alguns botões e puxa a gola pro lado. Deve ter sido o suficiente pra garantir uma punheta. Ele assente com a cabeça e ela, na exaustão consciente da noite e inconsciente da vida, fecha os botões e volta para sua cadeira, bem a tempo de ver o namorado abrindo a porta, despachado com um tapinha nas costas.
— Vamos. — Ele conseguiu telefonar para o pai e pedir um advogado, mas o pai lançou na mesa uma carta mais alta: um velho amigo delegado, velho amigo de vários delegados, dentre eles o que está de plantão na DP.
A alvorada já tinge os degraus da entrada de alaranjado. Encostado na porta, o Sargento Pança, com o cigarro entre o indicador e o polegar, crava, entre baforadas:
— Tenham um bom dia. Da próxima vez, façam isso em casa.
Conto bem interessante com umas cenas quotidianas, com pinceladas de cor! Diria até ao estilo de uma graphic novel. ❤️