Uns minutinhos de paz, era tudo o que Guilherme queria. A proibição do fumo em espaços fechados foi uma benção, ele passou a ter desculpa para dar uma volta e fazer uma pausa do teatrinho.
Ninguém no escritório sabia que ele tinha parado de fumar naquele fim de semana. Não sentiu tonturas nem morreu de angústia; seu autocontrole é extremo, feitor dos próprios desejos com chicote na mão. Sua única preocupação era mesmo não ter mais justificativa para frequentar o fumódromo em frente ao prédio.
O fumo permite a contemplação. Uma pessoa parada na calçada com cigarro na mão olhando o vazio é profunda e misteriosa; a mesma pessoa sem cigarro com os braços pendendo nas laterais é uma ameaça e deve ter se esquecido de tomar clozapina. Guilherme fechou o zíper do casaco enquanto ganhava a calçada. Ele não ia abrir mão dos seus momentos de sossego.
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“Mulher que fuma fica fedendo a cigarro lá embaixo?” Que cinzeiro esses homens andam lambendo?! Fabiana soltou a fumaça quase bufando. Numa mesa de bar, no fim de semana, alguns homens acharam pertinente opinar sobre atitudes femininas reprováveis, dentre elas o hábito de fumar. Ela mal conseguiu responder de tão revoltada.
Que delírio fisiológico é esse? A vulva é um universo: tantas fases, cheiros, mucos, texturas, há até métodos contraceptivos baseados nessas diferenças. Mas num país em que muitas mulheres usam um tipo especial de burca — uma burca botocada, harmonizada, ozempicada, só fica faltando uma plástica que devolva o brilho nos olhos de quem já morreu em vida satisfazendo expectativas alheias — elas também são pressionadas a usar substâncias químicas nocivas à flora meridional porque aparentemente a xota precisa ter aroma de Pinho-Sol ou tutti-frutti.
Pelo sim, pelo não, Fabiana começou hoje a fumar cigarro eletrônico. Dizem que libera menos fumaça e deixa menos cheiro. Ela se deu conta de que não estava mais sozinha na calçada; um homem esquisitíssimo escorava o prédio com as costas enquanto encarava o nada.
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Ney encaixou um cigarro entre os lábios enquanto aguardava o ônibus no ponto. Na saída do prédio do outro lado da rua, uma mulher olhava em volta e movimentava a cabeça no que claramente era um monólogo mudo enquanto tomava um Toddynho. Não, péra, aquilo é um cigarro a vapor? Coisa horrorosa. Ney nunca vai abrir mão do cigarro tradicional. É tão chique, deixa os dedos mais longos, as mãos no ar em um balé coreografando as palavras durante uma conversa, a fumaça em espirais hipnotizantes. Quantas imagens emblemáticas da época de ouro de Hollywood, estrelas misteriosas, inalcançáveis, incluíam um cigarro? Imagina Marlene Dietrich, musa, na aura impecável da iluminação dos seus filmes, parecendo soprar um bafômetro? Ou falar em um walkie-talkie? Fumar era uma arte. Foi reduzido a isso?
A mulher ficou inquieta ao perceber um homem que já estava há alguns minutos encostado na parede com olhar vidrado. Ney não conseguia entender para onde ele olhava. O homem voltou a si, convocado pela intensidade dos olhares que lhe dirigiam, inclinou-se para revirar os bolsos e sacou um pirulito. De bochecha cheia, um esquilo, palito projetado para fora da boca, ele concordou com a própria atitude em um aceno de cabeça e voltou a se focar no invisível.
Ney fez um muxoxo e examinou a fumaça na ponta do seu cigarro. “Marlene, do seu mundo não restou nada.”
Quero mais enquanto ler não matar! O fumo se revelou mortal depois de anos suportando a ansiedade dos soldados na guerra ou de todos na paz. Mas realmente qual o prazer de um pirulito cheio de glicose e de um cigarro a vapor ? A sensação das dietas. Não é que fumar aclarava ideias?
Não sei o que é um pirolito mas deve ser mais gostos que cigarro. Mas ainda mais gostoso é ler o teu conto. Adorei! Bravo 👏