Uma rua toda sua
Som: Junun - Shye Ben Tzur, Jonny Greenwood & The Rajasthan Express | Cheiro: petricor
Heloísa é flâneuse.
“Andarilha” soa mal, parece “maltrapilha”, não tem nenhum glamour. Heloísa sempre recorreu ao francês para elevar a situação. Outra tradução seria “desocupada”, mas não reflete a realidade. Ela estava ocupadíssima observando as pessoas, os costumes. Tudo era pesquisa para seu livro.
— Onde você vai, Heloísa?
— Onde as musas me levarem, Alberto. Você sabe que estou no modo “escrita”.
— De novo isso? E a mesa nova que você comprou porque precisava se organizar?
Alberto não entende que os grandes artistas de antigamente passavam horas a vaguear, tinham epifanias jogando pão para os patos, construíam obras inteiras a partir de pequenas frases ouvidas nos cafés. Erik Satie mudou-se de Montmartre para Arcueil e, todos os dias, caminhava três horas até sua ex-vizinhança parando em todos os cafés para compor suas músicas. Isso é comprometimento com o processo criativo!
No jardim perto de casa, Heloísa notou que as mesas de concreto onde os aposentados costumavam torrar suas pensões em um grande cassino a céu aberto estavam desocupadas. Um sinal claro das musas. De pernas cruzadas, costas reclinadas apoiadas na mesa, ela observava uma mulher que empurrava um carrinho de bebê.
Um pombo levantando voo com uma folha na boca. Uma pilha de chicletes parecendo confetes colados no poste. Um homem entrou no seu campo de visão:
— Dez reais.
— Hum?
— Dez reais.
Heloísa tem pena dos pedintes na rua, mas dar dinheiro não é a solução.
— Lamento, senhor, não vai ser possível.
— Tua colega aceitou dez pelo boquete semana passada. Dou metade agora. É pegar ou largar.
Ela optou por largar. Cordialmente; Heloísa se orgulha da sua educação. As musas indicavam que era hora de dar no pé. Sem problemas, a cidade é enorme, uma surpresa a cada esquina. Heloísa perdeu-se entre travessas que cortavam a artéria principal do bairro e encontrou um parquinho desconhecido. Gritaria de crianças se revezando no escorrega, vida pulsante que rende grandes fábulas. Ela pousou a bolsa no colo, espalmou uma mão sobre a outra e examinou o trio de garotos louros, o chão de borracha em torno do escorrega...os parquinhos costumavam ter chão de terra batida e concreto. Talvez por isso ela nunca mais tenha visto anúncio de Merthiolate ou Band-aid por aí. O canto do olho pescou um graveto se contorcendo. Era uma minhoca coberta de detritos. O mimetismo é incrível. Assim devem ser os flâneurs: mesclados ao ambiente, sempre a ver, nunca vistos.
Duas senhoras se sentaram ao seu lado. É assim que as musas trabalham! Que lição de vida fascinante essas mulheres vieram trazer?
— Tá tudo bem, minha filha? Quer que eu chame alguém para te ajudar?
— Você tá perdida? Quer ajuda para voltar pra casa? Ei, aonde você vai? Segura ela, Neide, que eu vou ligar pro SUS.
Jardins talvez não sejam assim tão interessantes para observação. Um pessoal meio básico, eles não têm a energia urbana que Heloísa quer captar. Ela entrou em uma pequena galeria de lojas duas ruas acima e sentou-se na praça de alimentação. Aqui dava até para fazer uns rascunhos, várias pessoas a comer. Todos revelam um pouco de si em seus hábitos alimentares.
Havia outro escritor em uma mesa, caneta na mão, caderno aberto, olhar intenso. Heloísa sentiu o peito inflar com a alegria de encontrar alguém com o mesmo ofício, o mesmo objetivo, piratas livres que só respondem ao vento, os dois no mesmo barco. Era uma aula, o modo como ele estudava atentamente as pessoas que deixavam as bandejas com os restos de refeição nas mesas, até se levantar e ir casualmente se servir de um saquinho de batatas fritas abandonado.
É claro que um personagem dele deve ter alguma atitude semelhante e ele quis testar no mundo real! Artistas sempre transitam entre o fictício e o existente e por isso são vistos como excêntricos, loucos, rebeldes...ele foi até outra mesa e buscou um sonho comido pela metade, desta vez olhando fixamente para Heloísa enquanto chupava o resto do creme de confeiteiro na ponta do dedo. As musas não disseram nada, mas ela intuiu que deveria aproveitar o início da tarde lá fora.
Pingos grossos começaram a cair quando Heloísa virou em uma rua arborizada. Ela correu para a entrada de uma casa de bingo, um caixote sem janelas com um grande sinal em néon. Pagou a entrada, pegou a cartela e, tal qual Perséfone, desceu uma escadaria acarpetada em um corredor estreito de paredes pretas que desembocava em um salão com o mesmo esquema cromático. Luminárias fluorescentes no teto, algumas lâmpadas anunciando o fim da vida útil na sua intermitência. Uma senhora com cara de enfermeira em dia de folga apresentava os números para as sete pessoas presentes, todas com cigarro na mão.
Heloísa tossiu de leve — falta de hábito, o fumo foi proibido há algumas décadas — mas logo começou a sentir a aura de antigamente, da transgressão, dos cafés cheirando a tabaco, dos intelectuais que filosofavam entre baforadas.
— De-zes-seis. Um, seis. Dezesseis!
— Linha!
— Trin-ta-e-cin-co. Três, cinco. Trinta e cinco!
Na fumaça densa, a enfermeira gritava por cima da música do George Michael, todos respondiam com uma urgência latida, mãos com veias saltadas, dentes cerrados, cheiro concentrado de conhaque servido sem gelo. Heloísa se perguntou se a chuva lá em cima já havia parado. Uma senhora raquítica e encrespada brotou do seu lado, coque desgrenhado, cigarro pela metade bem enterrado entre dois dedos, voz de carburador.
— O que você tá fazendo aqui?
Senhora macilenta, olhos sulcados, não via sol há anos. Vampira do bingo.
— Vai embora, minha filha. Aqui é lugar de profissional. Não é ambiente pra você, não. — pontuou sugando o cigarro, a ponta vermelha correndo rumo à boca formando cinzas longas que se desfaziam em cima da mão.
Heloísa encaixou o trinco da porta com suavidade.
— Já voltou?
— Muita chuva.
Da janela do escritório já se viam silhuetas nos poucos retângulos iluminados sem cortinas do prédio em frente. Heloísa esticou o pescoço para espiar o movimento da rua enquanto jogava na gaveta os novos binóculos ainda embrulhados. A inspiração bate quando menos se espera, ela sabe. Les muses…as musas mandaram mirar sempre o horizonte.
Delícia de texto... as musas aparecem quando e onde menos se espera; é ficar à espreita.
Adorei! As musas são assim, maravilhosas mas por vezes escondem-se e nos surpreendem. Tal como o teu texto me surpreende. Delicioso ❤️